Trecho de terça: Divergente-Veronica Roth

fevereiro 11, 2014

Mas um trecho de Terça de um livro que adorei ler. Hoje é do livro Divergente da Veronica Roth, li em janeiro, em breve faço a resenha dele aqui no blog. Vamos ao trecho?


Capitulo 1


Há um único espelho em minha casa. Ele fica atrás de um painel corrediço no corredor do andar de cima. Nossa facção permite que eu fique diante dele no segundo dia do mês, a cada três meses: no dia em que minha mãe corta o meu cabelo.
Eu me sento em um banco e minha mãe fica em pé atrás de mim com a tesoura, aparando. Os fios caem no chão, formando um anel loiro e maçante.
Ao terminar, ela afasta os cabelos do meu rosto e os amarra em um nó. Eu reparo em como ela parece calma, e em como ela está concentrada. Ela tem muita experiência na arte de perder-se em pensamentos. Não posso dizer o mesmo de mim.
Eu espio minha imagem no espelho quando ela não está prestando atenção – não por vaidade, mas por curiosidade. Um rosto pode mudar muito em três meses. No meu reflexo, vejo um rosto estreito, olhos grandes e redondos, e um nariz longo e delgado – ainda pareço uma menina pequena, apesar de ter completado dezesseis anos em algum momento dos últimos meses. As outras facções celebram aniversários, mas nós não. Seria um ato de autocomplacência.
— Pronto — ela diz, ao prender o nó com um grampo.
Seus olhos surpreendem os meus no espelho. É tarde demais para desviar o olhar, mas ao invés de me censurar, ela sorri, encarando o nosso reflexo. Eu franzo levemente minhas sobrancelhas. Por que ela não me repreendeu?
— Hoje é o dia, afinal — ela diz.
— Sim — eu respondo.
— Você está nervosa?
Por um momento, eu encaro meus próprios olhos. Hoje é o dia do teste de aptidão que me mostrará a qual das cinco facções eu pertenço. E amanhã, na Cerimônia de Escolha, escolherei uma facção; escolherei o caminho que irei trilhar pelo resto da minha vida; escolherei se devo ficar com a minha família ou abandoná-la.
— Não — eu respondo. — Os testes não precisam mudar nossas escolhas.
— Certo — ela sorri. — Vamos tomar o café da manhã.
— Obrigada. Por cortar o meu cabelo.
Ela beija meu rosto e desliza o painel sobre o espelho. Acredito que minha mãe poderia ter sido linda em um mundo diferente. Seu corpo é magro sob o manto cinza. As maçãs de seu rosto são salientes e seus cílios são longos, e quando ela solta o cabelo à noite, ele cai ondulante sobre seus ombros. Mas, como integrante da Abnegação, ela é obrigada a esconder a sua beleza.
Andamos juntas até a cozinha. Nessas manhãs em que meu irmão prepara o café, a mão do meu pai acaricia meus cabelos enquanto ele lê o jornal, e minha mãe cantarola enquanto limpa a mesa, é que eu me sinto mais culpada por querer deixá-los.

+ + +

O ônibus fede a fumaça. Cada vez que ele passa sobre um trecho irregular de asfalto, me sacode de um lado para o outro, mesmo que eu esteja me apoiando no banco para me manter parada.
Meu irmão mais velho, Caleb, está em pé no corredor, segurando a barra de metal acima de sua cabeça para manter-se firme. Não somos parecidos. Ele puxou o cabelo escuro e o nariz curvado do meu pai, e os olhos verdes e covinhas nas bochechas da minha mãe. Quando ele era mais novo, este conjunto de traços parecia estranho, mas agora lhe cai bem. Se ele não fosse um membro da Abnegação, tenho certeza de que as meninas da escola reparariam nele.
Ele também herdou o talento da minha mãe para o altruísmo. Ofereceu seu assento no ônibus sem hesitar a um rabugento membro da Franqueza.
O homem vestia um terno preto e uma gravata branca – o uniforme padrão da Franqueza. Sua facção valoriza a honestidade e enxerga a verdade em branco e preto. Por isso se vestem assim.
Os intervalos entre os prédios diminuem e as estradas ficam mais regulares à medida que nos aproximamos do centro da cidade. O edifício que um dia foi chamado de Sears Tower – e que hoje chamamos de Eixo – surge em meio à névoa, como uma pilastra escura no horizonte. O ônibus passa sob os trilhos elevados. Eu nunca entrei em um trem, embora eles nunca parem de circular e haja trilhos por toda a parte. Apenas os integrantes da Audácia andam de trem.
Há cinco anos, pedreiros voluntários da Abnegação restauraram algumas das ruas. Eles começaram os consertos pelo centro e seguiram em direção aos limites da cidade, até que seus materiais se esgotaram. As ruas da região onde eu moro ainda são rachadas e desiguais e não é seguro dirigir por elas. Mas isso não importa, porque nós não temos um carro.
A expressão de Caleb permanece tranquila enquanto o ônibus treme, balança e arranca pela estrada. Com o manto cinza dependurado em seu braço, ele segura a barra de ferro para manter o equilíbrio. Percebo pelos movimentos constantes de seus olhos que ele está observando as pessoas ao nosso redor – se esforçando para enxergar apenas elas, e não a si mesmo. A facção da Franqueza valoriza a honestidade, mas a nossa facção, a Abnegação, valoriza o altruísmo.
O ônibus para em frente à escola e eu me levanto, espremendo-me para passar entre o integrante da Franqueza e o banco da frente. Ao tropeçar sobre os sapatos do homem, me apoio na mão de Caleb. Minhas calças são longas demais e eu nunca fui muito graciosa.
O edifício dos Níveis Superiores abriga a mais antiga das três escolas da cidade: Níveis Inferiores, Níveis Medianos, e Níveis Superiores. Como todas as outras construções ao redor, ele é feito de vidro e aço. Há uma enorme escultura de metal em frente ao edifício que os integrantes da Audácia costumam escalar depois das aulas, desafiando uns aos outros a subir cada vez mais alto. No ano passado, vi uma das integrantes cair e quebrar a perna. Fui eu que corri para chamar a enfermeira.
— Testes de aptidão hoje — eu digo.
Caleb não é nem um ano mais velho que eu, então somos da mesma série.
Ele acena com a cabeça ao atravessarmos a porta de entrada. Meus músculos contraem-se quando entramos no prédio. Há um clima de fome no ar, como se cada aluno de dezesseis anos estivesse tentando devorar o máximo deste dia possível. É bem provável que não caminhemos mais por estes corredores depois da Cerimônia de Escolha – depois que escolhermos nossas novas facções, elas se encarregarão de nos oferecer o resto dos nossos estudos.
Nossas aulas hoje durarão metade do tempo para que assistamos todas elas antes do teste de aptidão, que ocorrerá depois do almoço. Meu coração já está acelerado, só de pensar.
— Você não está nem um pouco preocupado com o que ele pode revelar? — eu pergunto a Caleb.
Paramos na bifurcação do corredor, de onde ele seguirá em uma direção, para a aula de Matemática Avançada, e eu em outra, para a aula de História das Facções.
Ele levanta uma sobrancelha para mim.
— Você está?
Poderia dizer-lhe que tenho me preocupado há semanas a respeito do que o teste de aptidão irá me revelar: Abnegação, Franqueza, Erudição, Amizade, ou Audácia?
No entanto, apenas sorrio e digo:
— Não muito.
Ele sorri de volta.
— Bem... Tenha um bom dia.
Sigo para a aula de História das Facções, mordendo o meu lábio inferior. Ele não respondeu a minha pergunta.
Os corredores são estreitos, embora a luz que entra pelas janelas crie a ilusão de espaço. São uns dos poucos lugares em que pessoas da nossa idade e de facções diferentes se misturam. Hoje, os estudantes apresentam uma energia diferente, uma sensação de último dia.
Uma menina de cabelos longos e encaracolados grita “ei!” perto do meu ouvido, acenando para um amigo distante. Uma manga de jaqueta esbarra na minha cara. De repente, um garoto da Erudição vestindo um casaco azul me empurra. Perco o equilíbrio e caio no chão com força.
— Sai da frente, Careta — ele diz rispidamente, e segue pelo corredor.
Meu rosto esquenta. Levanto-me e me ajeito. Algumas pessoas pararam quando eu caí, mas nenhuma ofereceu ajuda. Seus olhares apenas me acompanham até o final do corredor. Esse tipo de coisa tem acontecido com outros integrantes da minha facção há meses – os membros da Erudição têm divulgado relatórios antagônicos em relação à Abnegação, e isso tem afetado nosso relacionamento na escola. As roupas cinza, o corte de cabelo simples e o comportamento modesto da nossa facção deveriam me ajudar a esquecer de mim mesma, e fazer com que as outras pessoas se esquecessem de mim também. Mas agora eles fazem de mim um alvo.
Eu paro em frente a uma janela da Ala E, e espero a chegada dos integrantes da Audácia. Faço isso todas as manhãs. Às 7:25 em ponto, eles provam sua coragem ao pular de um trem em movimento.
Meu pai chama os integrantes da Audácia de “endiabrados”. Eles têm piercings, tatuagens, e usam roupas escuras. Sua principal função é proteger a grade que circunda nossa cidade. Proteger de que, eu não sei.
Eles deveriam me deixar chocada. Eu deveria me perguntar o que a coragem – que é a virtude que eles mais valorizam – tem a ver com um anel de metal pendurado no nariz. No entanto, eu os sigo com os olhos por onde quer que eles andem.
O apito do trem toca alto e seu som ressoa em meu peito. O farol do trem pisca enquanto a composição se desloca violentamente e passa em frente à escola, com suas rodas rangendo contra os trilhos de metal. Ao passarem os últimos vagões, uma quantidade enorme de jovens com roupas escuras se atira do trem em movimento, alguns caindo e rolando no chão, outros pisando em falso rapidamente antes de recobrarem o equilíbrio. Um dos garotos coloca o braço em volta dos ombros de uma menina, rindo.

Assisti-los é uma atividade vã. Eu desvio meu olhar da janela e atravesso a multidão até a sala de História das Facções.

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